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sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Que os super-ricos paguem a conta, por Reginaldo Moraes


O Jornal de todos Brasis
 
Reginaldo Moraes | Brasil Debate
 
...  ou como tirar a classe média da influência da direita
 
Faz alguns anos, a Receita Federal divulga os grandes números das declarações de renda. Neste ano, divulgou dados que nunca divulgara. E com isso ficamos sabendo, número por número, coisas estarrecedoras que só podíamos deduzir, observando o comportamento de nossos ricaços. Veja alguns destaques:
Quantas pessoas físicas fazem declaração?
Quase 27 milhões.
Qual é o “andar de baixo”?
Os 13,5 milhões que ganham até 5 salários mínimos. Se deixassem de pagar IR, a perda seria de mais ou menos 1% do total arrecadado pela receita. Só. E gastariam esse dinheiro, provavelmente, em alimento, roupa, escola, algum “luxo popular”.
Quais são os andares de cima?
São três andares:
1. Os que ganham entre 20 e 40 salários mínimos. Correspondem a mais ou menos 1% da população economicamente ativa. Podem ter algum luxo, pelos padrões brasileiros. Mas pagam bastante imposto.
2. Tem um andar mais alto. Os que ganham entre 40 e 160 SM representam mais ou menos 0,5% da população ativa. Já sobra algum para comprar deputados (ou juízes).
3. E tem um andar “de cobertura”, o andar da diretoria, da chefia. A nata. A faixa dos que estão acima dos 160 SM por mês. São 71.440 pessoas, que absorveram R$ 298 bilhões em 2013, o que correspondia a 14% da renda total das declarações. A renda anual média individual desse grupo foi de mais de R$ 4 milhões. Eles representam apenas 0,05% da população economicamente ativa e 0,3% dos declarantes do imposto de renda. Esse estrato possui um patrimônio de R$ 1,2 trilhão, 22,7% de toda a riqueza declarada por todos os contribuintes em bens e ativos financeiros. Pode estar certo de que são estes que decidem quem deve ter campanha financiada. Podem comprar candidatos e, também, claro, sentenças de juízes.
Quem sustenta o circo? Quem mais paga IR?
A faixa que mais paga é a do declarante com renda entre 20 e 40 salários mínimos, que se pode chamar de classe média ou classe média alta.
Quem escapa do leão?
O topo da pirâmide, o grupo que tem renda mensal superior a 160 salários mínimos (R$ 126 mil). As classes média e média alta pagam mais IR do que os verdadeiramente ricos.
Em 2013, desses 72 mil super-ricos brasileiros, 52 mil receberam lucros e dividendos – rendimentos isentos. Dois terços do que eles ganham sequer é taxado. São vacinados contra imposto. Tudo na lei, acredite. A maior parte do rendimento desses ricos é classificada como não tributado ou com tributação exclusiva, isto é tributado apenas com o percentual da fonte, como os rendimentos de aplicações financeiras.
Em 2013, do total de rendimentos desses ricaços, apenas 35% foram tributados pelo Imposto de renda pessoa física. Na faixa dos que recebem de 3 a 5 salários, por exemplo, mais de 90% da renda foi alvo de pagamento de imposto. Em resumo: a lei decidiu que salário do trabalhador paga imposto, lucro do bilionário não paga.
O que isso exige da ação política?
Quando a classe trabalhadora e suas organizações se enfraquecem, burocratizam ou recuam, deixam a ideologia e os sentimentos da classe média sob o comando da classe capitalista. Mais ainda, da sua ala mais reacionária. Pior ainda: a direita conquista até mesmo o coração dos trabalhadores que são tentados a se imaginar como “classe média”.
Na história do século 20, o resultado disso foi a experiência do fascismo, em suas múltiplas formas e aparições.
Nos últimos anos, os bilionários brasileiros e seus cães de guarda na mídia perceberam que podiam conquistar o ressentimento da classe média para jogá-la contra os pobres, os nordestinos, os negros, tudo, enfim, que se aproximasse dos grupos sociais que fossem alvo de políticas compensatórias, de redistribuição. E contra governos e partidos que tomassem essa causa.
E a esquerda, de certo modo, assistiu a essa conquista ideológica sem ter resposta. Uma resposta política: a criação de movimentos reformadores que fizessem o movimento inverso, isto é, colocassem essa classe média contra os altos andares da riqueza. Nós não soubemos fazer isso. Talvez pior: acho que nem tentamos fazer isso.
Aparece agora essa urgente necessidade e a providência divina, travestida de Receita Federal, nos traz uma nova chance.
Já sabíamos que os brasileiros mais pobres pagam mais impostos, diretos e indiretos, do que os brasileiros mais ricos. Sabemos que todos pagamos imposto sobre propriedade territorial urbana – o famoso IPTU. E conhecemos o estardalhaço que surge quando se fala em taxar mais os imóveis em bairros mais ricos.
Mas sabemos coisa pior: grandes proprietários de imóveis rurais não pagam quase nada. Sobre isso não tem estardalhaço. É assim: se você, membro da “classe média empreendedora” passeante da Avenida Paulista, tem uma loja, oficina ou restaurante de self service, paga um belo IPTU. Se você fosse um grande proprietário rural (como os bancos e as empresas de comunicação), seu mar de terras com uma dúzia de vacas não pagaria ITR. Ah, sim, teria crédito barato.
Tudo isso já é mais ou menos sabido e merece reforma. Mas ainda mais chocante é o que se chama de “imposto progressivo sobre a renda”, que agora sabemos que é ainda menos progressivo do que imaginávamos.
Faz algum tempo escrevi um artigo dizendo que a Receita Federal deveria concentrar sua fiscalização na última faixa dos declarantes pessoa física, responsável por 90% do IR. Se o resto simplesmente deixar de pagar não vai fazer tanta diferença. Além disso, a faixa mais alta é aquela que menos recolhe na fonte e a que mais tem “rendimentos não tributáveis” e de “tributação exclusiva”, isto é, rendimentos derivados de investimentos, não de pagamento do trabalho.
Fui injusto ou impreciso, moderado demais. A Receita e os legisladores podem economizar mais tempo do que eu supunha. Basta que prestem atenção em 100 mil contribuintes, do total de 26 milhões. Essa é a mina. Se conseguir que eles paguem o que devem e se conseguir que eles percam as isenções escandalosas que têm, posso apostar que teremos mais dinheiro do que os ajustes desastrados e recessivos do senhor ministro da Fazenda.
O que isso significa para o que chamamos de esquerda – partidos, sindicatos, movimentos sociais? Sugiro pensar em um movimento unificado com uma bandeira simples: que esses 100 mil ricaços paguem mais impostos e que deem sua “contribuição solidária” para reduzir a carga fiscal de quem trabalha. É preciso traduzir essa ideia numa palavra de ordem clara, curta e precisa, mobilizadora. E traduzi-la numa proposta simples e clara de reforma, cobrada do governo e do Congresso. A ideia é simples: isenção para os pobres, redução para a classe média, mais impostos para os ricaços.
Talvez essa seja uma boa ideia para fazer com que a “classe média” que atira nos pobres passe a pensar melhor em quem deve ser o alvo da ira santa. Afinal, milhares e milhares de pagadores de impostos foram para as ruas, raivosos, em agosto, enquanto os nababos que de fato os comandam ficavam em seus retiros bebendo champanhe subsidiada.
Os passeadores da Avenida Paulista são figurantes da peça, eles não sabem das coisas – os roteiristas e produtores nem deram as caras.
Em que rumo os partidos e movimentos populares devem exigir mudanças?
1. É justo e perfeitamente possível isentar todo aquele que ganha até 10 salários mínimos. Não abala a arrecadação se cobrar um pouco mais dos de cima.
2. É necessário e legítimo criar faixas mais pesadas para os andares mais altos. Mas não é suficiente.
3. É preciso mudar as regras que permitem isenção e desconto para lucros e dividendos.
4. É preciso e é legítimo mudar as regras para os pagamentos disfarçados, não tributáveis, em “benefícios indiretos”. A regra tem sido um meio de burlar a taxação.
5. É preciso e é legítimo mudar as regras de imposto sobre a propriedade territorial. A classe média estrila com o IPTU. Mas deveria é exigir cobrança do ITR.
6. É preciso ter um imposto sobre heranças. Com isenção para pequenos valores e tabela progressiva.


terça-feira, 8 de setembro de 2015

Crise dos refugiados mostra insensatez moral de líderes europeus, por Dorrit Harazim


Do O Globo
‘Onde está o mundo?’
Dorrit Harazim
Aylan foi o mensageiro e a mensagem jogada ao mar. Devolvido pelas águas à mesma praia na Turquia de onde partira rumo à Europa num bote de esperançados, ele próprio era o recado, que dizia: “Eu sou vocês”. Foi sua imagem sem vida que anunciou ao mundo, em linguagem universal, a falência múltipla de humanidade e civilidade em que vivemos.
À notável exceção da chanceler alemã Angela Merkel, a liderança europeia revelou-se uma muralha de insensatez e déficit moral. Como resposta inicial para a maré humana que bate à porta dos fundos do continente, a Europa ergueu muros. Barricadas de arame farpado surgiram primeiro na fronteira da Hungria com a Sérvia. Outras muralhas em outros países da rota dos refugiados estavam previstas.
É a Europa mostrando suas vísceras. Em vão. Já deveria ter ficado claro para o Ocidente tão orgulhoso de sua civilização cristã que apenas a morte interrompe a marcha de um homem movido a esperança. Segundo dados das Nações Unidas, eles já são 60 milhões — entre refugiados, migrantes, exilados, apátridas compulsórios e enxotados de países do Oriente Médio e África do Norte em guerra ou instáveis.
Basta olhar o mapa desses deslocamentos maciços dos anos recentes. A rota do primeiro grande êxodo foi pelo Mediterrâneo Ocidental, na tentativa de fincar pé na Europa através da Espanha. A impermeabilidade do primeiro-ministro Mariano Rajoy em acolhê-los, contudo, encarregou-se de fazer com que procurassem outros traçados.
A rota migratória seguinte coalhou de embarcações negreiras o Mediterrâneo Central, despejando os sobreviventes na costa da Itália. Atualmente a hégira se deslocou para o Mediterrâneo Oriental, com centenas de milhares de almas despejadas na Grécia para, de lá, tomar o caminho dos Bálcãs e um dia recomeçar a vida, quem sabe, na Alemanha.
O menino Aylan sequer conseguiu sair do ponto de partida. E os que sobreviveram à etapa inicial hoje estão sendo tratados como gado na Hungria, uma das fronteiras de acesso à Europa mais rica. Por isso, uma nova rota já começou a ser testada: esta semana os mercadores de pessoas conseguiram levar sua carga humana até o Nordeste da Rússia, para de lá alcançar a Noruega através do Círculo Ártico.
Tenta-se de tudo para escapar da ratoeira húngara em que se encontra uma massa de desesperados que fugiu da guerra e do terror, da morte ou escravidão e suportou em vão a aliança sanguessuga de policiais, bandidos e traficantes. Com o ultranacionalista Viktor Orbán, chefe do governo da Hungria, decidido a “defender o cristianismo europeu do influxo muçulmano” e a “arrancar a Europa da sua obsessão com imigrantes e refugiados”, o bloqueio de seu país ao trânsito migratório chegou a um ponto de ebulição na noite de sexta-feira.
“Onde está o mundo?”, indagava o cartaz tosco empunhado por um dos refugiados da estação ferroviária de Keleti, impedidos de seguir viagem.
Onde está o Ronald Reagan de hoje para proclamar “Viktor Orbán, derrube este muro?”, como fez em 1987 o presidente americano diante do Portão de Brandemburgo, em desafio ao secretário-geral soviético Mikhail Gorbachev? Hoje, do outro lado do Atlântico, está Donald Trump, que, para conquistar a Casa Branca, promete construir um muro intransponível na fronteira com o México.
Onde está algo próximo ao Kindertransport (transporte de crianças, em alemão), a extraordinária operação humanitária que transportou de Praga até Londres dez mil crianças, em grande maioria judias, às vésperas da Segunda Guerra, salvando-as do holocausto? Na República Tcheca de hoje, policiais retiram refugiados de trens usando a força e ainda lhes atribuem números de registro nos braços ou punhos, a caneta. Felizmente, não foram tatuados, como nos campos de concentração nazistas.
Onde está o similar de corredor humanitário de 1948? Durante o bloqueio soviético de Berlim, uma ponte aérea militar conjunta de ingleses e americanos realizou mais de 200 mil voos para levar comida e suprimentos aos berlinenses em apenas um ano. Hoje, a Inglaterra do conservador David Cameron absorveu apenas 216 do total de quatro milhões de refugiados sírios que fugiram da guerra — número inferior à capacidade de uma única composição do metrô londrino.
Até a imagem do menino Aylan cobrir de opróbrio o planeta Terra, Cameron qualificava os migrantes de “enxame” e seu chanceler Philip Hammond alertava o país contra “saqueadores” africanos que ameaçam o “padrão de vida europeu”. O tabloide conservador “Daily Mail” ecoava: "Mantivemos Hitler fora daqui... Por que nossos líderes não conseguiriam impedir a entrada de alguns milhares de migrantes exauridos?”
A mudança veio da rua, das mídias sociais e conta com a determinação resoluta e decisiva de Angela Merkel. “O seu colega é judeu, seu carro é japonês, sua pizza é italiana, sua democracia é grega, seu café é brasileiro, (...) e você chama seu vizinho de estrangeiro?”, postou uma internauta inglesa inconformada com a indiferença de seus conterrâneos em relação ao outro. Quando o diário de maior circulação da Inglaterra, o eurocético e conservador “The Sun”, mudou de lado e escreveu “Mr. Cameron, acabou o verão... É hora de enfrentar a crise mais grave que a Europa enfrenta desde a Segunda Guerra”, o primeiro-ministro piscou. Cameron está revendo sua política migratória.
Da Islândia, a carta aberta a um ministro, postada por uma escritora de 33 anos, Bryndis Bjorgvinsdottir, levou dez mil compatriotas (4% da população do país) a oferecerem casa, comida, aprendizado da língua e inserção no país a famílias de refugiados. O texto que tanto mexeu com aquela gente de vida isolada, próxima à Groenlândia, dizia:
“Os refugiados são nossos futuros maridos e mulheres, melhores amigos ou almas gêmeas. Eles são os bateristas da banda dos nossos filhos, nosso futuro colega, a Miss Islândia 2022, o carpinteiro que finalmente vai terminar o banheiro, o atendente da cafeteria, o bombeiro, o gênio da informática ou o apresentador de televisão. Pessoas às quais jamais devemos poder dizer no futuro que suas vidas valem menos do que a minha”.
A curta vida do menino Aylan valeu muito: despertou o mundo.


Dorrit Harazim é jornalista