Do O Globo
‘Onde está o mundo?’
Dorrit Harazim
Aylan foi o mensageiro e a mensagem jogada ao mar. Devolvido pelas águas à mesma praia na Turquia de onde partira rumo à Europa num bote de esperançados, ele próprio era o recado, que dizia: “Eu sou vocês”. Foi sua imagem sem vida que anunciou ao mundo, em linguagem universal, a falência múltipla de humanidade e civilidade em que vivemos.
À notável exceção da chanceler alemã Angela Merkel, a liderança europeia revelou-se uma muralha de insensatez e déficit moral. Como resposta inicial para a maré humana que bate à porta dos fundos do continente, a Europa ergueu muros. Barricadas de arame farpado surgiram primeiro na fronteira da Hungria com a Sérvia. Outras muralhas em outros países da rota dos refugiados estavam previstas.
É a Europa mostrando suas vísceras. Em vão. Já deveria ter ficado claro para o Ocidente tão orgulhoso de sua civilização cristã que apenas a morte interrompe a marcha de um homem movido a esperança. Segundo dados das Nações Unidas, eles já são 60 milhões — entre refugiados, migrantes, exilados, apátridas compulsórios e enxotados de países do Oriente Médio e África do Norte em guerra ou instáveis.
Basta olhar o mapa desses deslocamentos maciços dos anos recentes. A rota do primeiro grande êxodo foi pelo Mediterrâneo Ocidental, na tentativa de fincar pé na Europa através da Espanha. A impermeabilidade do primeiro-ministro Mariano Rajoy em acolhê-los, contudo, encarregou-se de fazer com que procurassem outros traçados.
A rota migratória seguinte coalhou de embarcações negreiras o Mediterrâneo Central, despejando os sobreviventes na costa da Itália. Atualmente a hégira se deslocou para o Mediterrâneo Oriental, com centenas de milhares de almas despejadas na Grécia para, de lá, tomar o caminho dos Bálcãs e um dia recomeçar a vida, quem sabe, na Alemanha.
O menino Aylan sequer conseguiu sair do ponto de partida. E os que sobreviveram à etapa inicial hoje estão sendo tratados como gado na Hungria, uma das fronteiras de acesso à Europa mais rica. Por isso, uma nova rota já começou a ser testada: esta semana os mercadores de pessoas conseguiram levar sua carga humana até o Nordeste da Rússia, para de lá alcançar a Noruega através do Círculo Ártico.
Tenta-se de tudo para escapar da ratoeira húngara em que se encontra uma massa de desesperados que fugiu da guerra e do terror, da morte ou escravidão e suportou em vão a aliança sanguessuga de policiais, bandidos e traficantes. Com o ultranacionalista Viktor Orbán, chefe do governo da Hungria, decidido a “defender o cristianismo europeu do influxo muçulmano” e a “arrancar a Europa da sua obsessão com imigrantes e refugiados”, o bloqueio de seu país ao trânsito migratório chegou a um ponto de ebulição na noite de sexta-feira.
“Onde está o mundo?”, indagava o cartaz tosco empunhado por um dos refugiados da estação ferroviária de Keleti, impedidos de seguir viagem.
Onde está o Ronald Reagan de hoje para proclamar “Viktor Orbán, derrube este muro?”, como fez em 1987 o presidente americano diante do Portão de Brandemburgo, em desafio ao secretário-geral soviético Mikhail Gorbachev? Hoje, do outro lado do Atlântico, está Donald Trump, que, para conquistar a Casa Branca, promete construir um muro intransponível na fronteira com o México.
Onde está algo próximo ao Kindertransport (transporte de crianças, em alemão), a extraordinária operação humanitária que transportou de Praga até Londres dez mil crianças, em grande maioria judias, às vésperas da Segunda Guerra, salvando-as do holocausto? Na República Tcheca de hoje, policiais retiram refugiados de trens usando a força e ainda lhes atribuem números de registro nos braços ou punhos, a caneta. Felizmente, não foram tatuados, como nos campos de concentração nazistas.
Onde está o similar de corredor humanitário de 1948? Durante o bloqueio soviético de Berlim, uma ponte aérea militar conjunta de ingleses e americanos realizou mais de 200 mil voos para levar comida e suprimentos aos berlinenses em apenas um ano. Hoje, a Inglaterra do conservador David Cameron absorveu apenas 216 do total de quatro milhões de refugiados sírios que fugiram da guerra — número inferior à capacidade de uma única composição do metrô londrino.
Até a imagem do menino Aylan cobrir de opróbrio o planeta Terra, Cameron qualificava os migrantes de “enxame” e seu chanceler Philip Hammond alertava o país contra “saqueadores” africanos que ameaçam o “padrão de vida europeu”. O tabloide conservador “Daily Mail” ecoava: "Mantivemos Hitler fora daqui... Por que nossos líderes não conseguiriam impedir a entrada de alguns milhares de migrantes exauridos?”
A mudança veio da rua, das mídias sociais e conta com a determinação resoluta e decisiva de Angela Merkel. “O seu colega é judeu, seu carro é japonês, sua pizza é italiana, sua democracia é grega, seu café é brasileiro, (...) e você chama seu vizinho de estrangeiro?”, postou uma internauta inglesa inconformada com a indiferença de seus conterrâneos em relação ao outro. Quando o diário de maior circulação da Inglaterra, o eurocético e conservador “The Sun”, mudou de lado e escreveu “Mr. Cameron, acabou o verão... É hora de enfrentar a crise mais grave que a Europa enfrenta desde a Segunda Guerra”, o primeiro-ministro piscou. Cameron está revendo sua política migratória.
Da Islândia, a carta aberta a um ministro, postada por uma escritora de 33 anos, Bryndis Bjorgvinsdottir, levou dez mil compatriotas (4% da população do país) a oferecerem casa, comida, aprendizado da língua e inserção no país a famílias de refugiados. O texto que tanto mexeu com aquela gente de vida isolada, próxima à Groenlândia, dizia:
“Os refugiados são nossos futuros maridos e mulheres, melhores amigos ou almas gêmeas. Eles são os bateristas da banda dos nossos filhos, nosso futuro colega, a Miss Islândia 2022, o carpinteiro que finalmente vai terminar o banheiro, o atendente da cafeteria, o bombeiro, o gênio da informática ou o apresentador de televisão. Pessoas às quais jamais devemos poder dizer no futuro que suas vidas valem menos do que a minha”.
A curta vida do menino Aylan valeu muito: despertou o mundo.
Dorrit Harazim é jornalista
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