Por José Carlos de Assis, no GGN
No editorial “Ideologização de política externa isola o país e afeta economia”, o jornal Globo assume o ponto de vista dos entreguistas da Fiesp que preferem um alinhamento subalterno aos Estados Unidos a uma política que oriente opções estratégicas externas soberanas, fundamentais para o Brasil no século XXI. A tese da Fiesp foi exposta pelo seu conselheiro de política exterior Rubens Barbosa em artigo recente no próprio jornal que analisei anteriormente. Claro que há nisso uma articulação ideológica, o que revela que estamos diante dos passos iniciais de uma campanha.
A dialética nos ensina que há sempre um ponto de vista oposto a qualquer argumento, pelo que, muitas vezes, a verdade se encontra numa síntese em nível superior. Acontece que as teses levantadas por O Globo para provar o caráter ideológico da atual política externa brasileira não se sustentam num primeiro nível. É possível contestá-las com os próprios argumentos do Globo desde que os recoloquemos na perspectiva correta. Vou examinar os cinco pontos destacados pelo jornal sobre o que, a seu ver, é a política ideológica atual.
Primeiro ponto: “O país passou a depender bastante do Mercosul, mas o bloco entrou em crise, devido a Argentina.”
Conclui-se por essa observação que, segundo O Globo, o fato de termos exportado muito para o Mercosul nos tornou “perigosamente” dependentes da América do Sul. O jornal deveria perguntar aos industriais brasileiros por que cargas d´água não exportaram para os Estados Unidos e a Europa, admiráveis países de olhos azuis, o que exportaram para esses cucarachas cujo único elemento positivo é ter um mercado manufatureiro e de bens de capital compatível com nossa oferta, e uma capacidade de pagamento circunstancialmente alimentada por exportações de produtos primários para a China. Naturalmente não pudemos evitar a crise argentina, mas também não evitamos a europeia.
Segundo ponto: “Como a China ganhou grande importância para o Brasil, o desaquecimento chinês preocupa.”
Ah, então é isso. Deveríamos ter moderado nossas exportações de primários para a China a fim de evitarmos a decepção de um desaquecimento chinês. Entretanto, para quem exportaríamos o que se “economizaria” em vendas para a China? Será que O Globo não se preocupa com a terrível estagnação europeia e o vaivém da economia norte-americana? Onde deveríamos ter procurado mercados para evitar o “excesso de confiança” na China, a economia que desde 30 anos é a que mais cresce no mundo, continuamente, e cujo desaquecimento aponta para a taxa absolutamente fantástica nos tempos atuais de 7,5%?
Terceiro ponto: “A queda de preços internacionais de matérias-primas contribui para déficits comerciais brasileiros.”
Então deveríamos lamentar que não tenhamos dado ainda maior ênfase ao comércio com a América do Sul e a América Latina, pois esses são os nossos mercados possíveis de manufaturados para compensar a queda dos preços dos primários. Nossa indústria de bens de capital, por exemplo, não pode competir tecnologicamente a não ser nos mercados sul-americanos e, em parte, africanos. Foram os dois mercados que, desde Lula, a inteligente política do Itamaraty valorizou. Não temos outra alternativa estratégica porque não temos tecnologia em bens de capital para concorrer com americanos e alemães em outras regiões do mundo.
Quarto ponto: “Crise à parte, descaso de fundo ideológico com os EUA se reflete no comércio externo.”
Nosso “descaso” com os EUA, de janeiro a agosto, representou um déficit comercial de US$ 5,8 bilhões para com eles. Até o fim do ano, o déficit representará cerca de US$ 10 bilhões. Acaso O Globo imagina que se o futuro Governo fizer um acordo de livre comércio com os Estados Unidos, como pretende a Fiesp, suas exportações para nós crescerão menos que as importações? Ou simplesmente nos levarão à quebra, esgotando as reservas cambiais que fizemos graças às exportações para a China?
Note-se que, desde 2010, os discursos inaugurais de Obama a cada ano repetem o objetivo estratégico de dobrar as exportações norte-americanas a cada cinco anos. É um dos poucos objetivos econômicos do Governo americano que vêm sendo cumpridos religiosamente. Por outro lado, seria interessante que Globo e Fiesp prestassem atenção nos discursos de encaminhamento ao Congresso dos acordos de livre comércio com o grupo da Aliança do Pacífico. A premissa invariável é que se trata de um instrumento para “aumentar as exportações e o emprego” nos EUA, não as importações. A propósito, todos os países da Aliança do Pacífico entraram em déficit comercial no ano passado, o que continua este ano.
Quinto ponto: “Brasil voltou a ser essencialmente um grande exportador de matérias primas.”
É verdade. Esse foi o país herdado dos tucanos que se limitaram a uma aliança literária com os EUA tendo em vista os predicados acadêmicos de FHC muito valorizados no norte. Essa situação, que perdura, pode ser revertida mediante uma aliança econômica estratégica com a Unasul e os BRICS, principalmente a China, pela qual será possível deslocar o eixo do nosso desenvolvimento para o sul, tendo em vista a estagnação do norte. É nossa única alternativa, tendo em vista o visível esgotamento do ciclo capitalista ocidental e a dinâmica asiática.
Já expus aqui a tese que venho defendendo com outros economistas de fora e mesmo de dentro do Governo: fazer um grande acordo de suprimento de metais para a China mediante industrialização de recursos naturais no Brasil e no resto da América do Sul, com financiamento chinês dessa industrialização garantido por contratos de suprimento de longo prazo desses metais. Com isso, ajudaremos a China a lidar com seus problemas de escassez de água, de energia e de poluição, e mobilizaremos as mais importantes bases de recursos naturais que temos para industrialização na própria região com rigoroso controle ambiental.
A alternativa da Fiesp é simples: fazemos um acordo de livre comércio com os EUA e outro com a União Europeia, entregamos nossa indústria à sanha de uma competição com recursos tecnológicos muito superiores aos nossos, destruímos o que resta de emprego na área e nos entregamos, por algum tempo, à autofagia de nossas reservas até seu completo esgotamento e a crise cambial. Durante esse tempo os barões da Fiesp terão vendido para americanos e europeus suas indústrias, que serão convertidas em braços comerciais de matrizes estrangeiras. E o Brasil que se dane!
*Economista, doutor pela Coppe/UFRJ, professor de Economia Internacional da UEPB.
http://jornalggn.com.br/noticia/a-entrega-cabal-da-economia-pela-politica-externa-do-globo-por-j-carlos-de-assis
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