Ao relembrar o suicídio de Getúlio Vargas, que completa 60 anos neste domingo, o jornalista Janio de Freitas destaca o papel dos meios de comunicação na tragédia; "monolíticos, a imprensa, a incipiente TV e o rádio, mais do que se aliarem à irracionalidade, foram seus porta-vozes sem considerar as previsíveis consequências para o Estado de Direito".
247 - Repórter que cobriu a morte de Getúlio Vargas há exatos 60 anos, o jornalista Janio de Freitas relembra, neste domingo, o papel dos meios de comunicação na tragédia que culminou com o suicídio do político que fundou as bases do trabalhismo no Brasil.
"Getúlio ficou indefeso, objeto de um ódio coletivo que se propagava sem limites: monolíticos, a imprensa, a incipiente TV e o rádio, mais do que se aliarem à irracionalidade, foram seus porta-vozes sem considerar as previsíveis consequências para o Estado de Direito", rememora.
Acusado de envolvimento, ainda que indireto, no polêmico atentado da rua Toneleros contra Carlos Lacerda, no Rio de Janeiro, Getúlio foi cassado sem trégua pelos meios de comunicação.
No entanto, após o suicídio de Getúlio, os veículos de imprensa, artífices do golpe foram também golpeados pela população ensandecida.
A "Tribuna da Imprensa" de Lacerda foi empastelada. A redação de 'O Globo' foi atacada, carros do jornal foram destruídos, o 'Jornal do Commercio' teve sua oficina invadida, vários dos 17 jornais foram alvos da massa", diz Janio de Freitas.
A atuação da imprensa como força política no Brasil vem de longe.
Janio de Freitas
Um dia, um país
No dia 23, o Brasil estava endoidecido de ódio a Getúlio. No dia 24, enlouquecido de saudade
Era um agosto assim, quase todo de dias luminosos, porém mais quentes no Rio. Exausto, mal começava a dormir no início da manhã, quando ouvi a clarinada de um "Repórter Esso" fora de hora. Foi só o tempo de tatear o botão do rádio para ouvir a frase dura e aguda como um punhal: "O presidente Getúlio Vargas cometeu suicídio com um tiro no peito". Em minutos, era o telefonema de Pompeu de Souza: "Vai para a Redação o mais rápido possível". Começava o dia mais inesperadamente espantoso de que me lembre: 24, claro que de agosto.
Do final da véspera à alta madrugada, Armando Nogueira e eu andáramos, ida e volta, ida e volta, na calçada paralela à fachada do Palácio do Catete, do outro lado da rua alargada naquele trecho. Foi a maneira de observarmos os ocupantes de carros que entravam e saíam do palácio, valendo-nos de que a Polícia do Exército proibira a parada de curiosos, mas permitia a passagem na faixa isolada.
Esse andar incessante se confundia com meus primeiros passos no jornalismo, há pouco registrado como jornalista profissional no "Diário Carioca" e sem pensar em sê-lo de fato. O futuro imaginado ainda combinava asas e motores --para sempre inesquecidos. Já era quase dia quando vimos que o portão do palácio ficou meio aberto, e arriscamos uma arrancada para entrar. Deu certo. Só na sala de estar bem interior vimos, afinal, uma pessoa. Sentado em uma das poltronas avermelhadas, uma perna sobre o braço da poltrona, a testa apoiada em alguns dedos e voltada para o chão. Sozinho.
Ministro da Justiça, o mais moço do ministério, Tancredo Neves nos mostrava muito mais do que nos dizia: a situação continuava muito difícil, a reunião do presidente com os generais não foi conclusiva (eles propunham a licença de Getúlio, que a recusava na certeza de que não o deixariam reassumir), hoje será um dia de muita tensão. Deixamos Tancredo, cansado e triste, um dos poucos a não desertar da lealdade ao presidente.
Minha primeira tarefa, cedo ainda, foi ver o que se passava na Base Aérea do Galeão. Tornara-se a República do Galeão, assim chamada a exacerbação de poder militar adotada por coronéis e majores da FAB, na represália ao atentado a Carlos Lacerda em que morreu um major dos que lhe davam proteção. Desde 6 de agosto, dia seguinte ao atentado, o país passou a viver em torno da exaltação concentrada na República do Galeão, e em crescendo permanente sob a agitação furiosa feita por Lacerda.
Logo acusado do crime por Lacerda, Getúlio ficou indefeso, objeto de um ódio coletivo que se propagava sem limites: monolíticos, a imprensa, a incipiente TV e o rádio, mais do que se aliarem à irracionalidade, foram seus porta-vozes sem considerar as previsíveis consequências para o Estado de Direito. Só a "Última Hora" diferenciava-se, com a desmoralizada voz de causadora inicial da crise, por seu recente e grandioso nascimento sob patrocínio do governo e com dinheiro do Banco do Brasil.
Na caça vingativa à guarda pessoal de Getúlio, dada como autora do atentado, a República do Galeão ensandeceu o país. O getulismo, quase uma religião, evaporou. Os políticos governistas emudeceram ou sumiram. Até os sindicatos do trabalhismo voltaram-se contra o seu criador. Getúlio não tinha saída. Os majores e coronéis que vi chegarem ao Galeão, já sob enorme guarda, ornavam a sua arrogância com os ares de vitória proporcionados pelo suicídio.
O jornal me mandou voltar depressa. A República do Galeão não interessava mais: a cidade enlouquecia. Manhã ainda, multidões vagavam pelo centro. As caras, ou encharcadas de lágrimas ou enrijecidas de raiva. A "Tribuna da Imprensa" de Lacerda foi empastelada. A redação de "O Globo" foi atacada, carros do jornal foram destruídos, o "Jornal do Commercio" teve sua oficina invadida, vários dos 17 jornais foram alvos da massa. Lojas, portarias, ônibus, bondes, automóveis, carros da polícia em fuga, a Câmara dos Deputados e o Senado, as cercanias dos guarnecidos ministérios do Exército e da Marinha, tudo devia pagar pelo abandono em que Getúlio fora deixado por todos, e pela própria massa.
No dia 23, o Brasil estava endoidecido de ódio a Getúlio. No dia 24, enlouquecido de paixão e saudade. Uma reversão assim súbita, generalizada e radical da opinião coletiva, de um extremo ao seu exato oposto, por certo é um fenômeno que não merecia o descaso dos pagos para pesquisar e estudar o Brasil.
Mais ainda porque são poucos a terem percebido, com o tempo, o que estava no substrato da convulsão. Sobretudo a Petrobras, mas também as muitas outras criações do governo, como o BNDE, contrapunham-se à situação de um país dócil ao capital estrangeiro das espoliações típicas da época, e seus associados nacionais. A campanha contrária, no meio militar até segregacionista, ainda hoje pode ser vista, por exemplo, no sentido acusatório dado a "nacionalista". O embaixador Adolf Berle Jr., contra Getúlio, abriu o caminho para o embaixador Lincoln Gordon, contra Jango. E os militares iniciaram em 1954 a marcha para 1964.
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